domingo, 13 de março de 2011

Escuro.

Eu não uso drogas, não bebo, não sou um viciado em sexo, nunca tive crises depressivas, nunca tentei me matar, nunca tomei remédios para dormir, não trato a vida com indiferença, não sorrio por sorrir, não choro nunca.

Meu corpo parece ser uns cinco anos mais velho do que a idade real, tenho olheiras, insônia, poucos amigos, poucos bens, muitas ideias, muitos livros, tenho um amor, algumas paixões, muita indecisão, algumas indagações, tenho um celular velho, uma flor ao lado da minha cama, tenho um perfume e uma alma.

Escuto rock, por que tem dias que só o rock resolve, escuto MPB, pra poder apreciar, escuto sertanejo pra dançar juntinho, e escuto pagode por falta de opção. Sou eclético de forma justa, e às vezes tão justa que não tem espaço para gostar de mais nada.

Tenho evidências que desfazem muitos clichês, não sou falso, mas não gosto de assustar ninguém com a escuridão radiante que mora em mim.

Nunca pensei em morrer, mas nunca consegui me visualizar daqui a 20 anos, é uma duvidosa certeza de que esse tempo não existe. Como diria o poeta, na verdade não há.

Protejo-me de tudo e de todos, e sempre acabo me ferindo sozinho. Tenho a melancolia de um artista livre dentro de mim. A arte me diz tudo que não preciso saber, mas é tudo que me ajuda a viver. Eu danço sobre as palavras, como se tivessem ritmos, como se fossem meu primeiro idioma.

Pergunto-me, então, pra que o corpo quando o que uso não pesa? , pra que o corpo se a realidade não está nele? , por que do corpo se nem mesmo a dor está nele?

Minha incoerente conclusão concluiu que o corpo é o canal para a alma viver, mesmo tão esquálido. A força da alma precisa se combinar a fraqueza da carne.

Por mais poético, clichê e manjado que seja dizer que a vida é uma arte, eu sempre digo, basta criar sempre... " e se não é pela arte, porque a alma pesando o corpo?"

quarta-feira, 9 de março de 2011

Lágrimas da Nuvem

(Noite Estrelada - Vincent Van Gogh)

Seis e meia da manhã, anunciava o despertador, Lucas acordou com vontade de jogá-lo na parede. Ele se levantou e foi tomar banho, como sempre, a água não aqueceu o suficiente, terminou de aprontar-se, pegou sua mochila e saiu para pegar o ônibus. Junior, seu cachorro, estava com a pata suja, e ele foi ao trabalho com uma marca de barro em sua calça.

Tempo nublado, frio, e a partir daquele momento, chuvoso. Ele notou que seu guarda-chuva estava quebrado. O ônibus lotado o fez apertar sua mochila e perceber que esquecera sua pasta com as tarefas do dia.

Após ter corrido por quatro quadras, Lucas entrou na escola atrasado e seguiu direto para a sala. O barulho o deixou sem ação, então simplesmente começou sua aula passando textos no quadro. Um dos alunos notou a mancha em sua calça e comentou em alta voz para que todos percebessem. Como um professor inexperiente, apenas fingiu que nada estava acontecendo. Logo trocou de turma, e os estudantes comemoraram o esquecimento do professor e a prova adiada.

Ao fim da manhã Lucas enfrentou outro ônibus. Chegando em casa ligou o fogão para esquentar o que sobrou da janta na noite passada, o telefone tocou para mais uma cobrança, se distraiu e acabou deixando o único bife queimar. "Ainda bem que hoje é dia de pagamento", pensou.

Esperou cerca de uma hora na fila do banco e recebeu apenas metade do que precisava. Foi um mês difícil, teve muitas faltas no trabalho e conseqüentemente muitos descontos salariais.

O tempo começou a melhorar, a chuva cessou. Ele entrou em contato com a sogra, pois as crianças estavam passando uma temporada na casa dela, e já era hora de buscá-las para realizarem juntos a grande tarefa. O pai comprou um bolo, e com todo cuidado tomou outro ônibus, graças a Deus o bolo permaneceu intacto. As crianças ficaram felizes por vê-lo, elas já estavam prontas aguardando por sua chegada, os meninos passaram gel no cabelo, e a menina usava seu melhor vestido. Lucas chamou um táxi e partiram.

O hospital estava calmo naquele dia. Rapidamente prepararam o bolo, acenderam as velas e entraram no quarto cantando parabéns baixinho para a mãe que os aguardava confiante e fraca. Naquele momento todas as suas forças se uniram para dar um sorriso. As crianças deram seus desenhos para a aniversariante com lágrimas nos olhos, e o presente era um belo lenço para cobrir-lhe a falta de cabelos. Lucas beijou sua esposa, as crianças a abraçaram.

O horário de visitas terminou e Lucas gastou seu último trocado no táxi para as crianças voltarem para a casa da avó.

Lucas foi embora caminhando, e por sinal, uma longa caminhada de reflexão, satisfação, e a partir daquele momento, chuva.